A Chave que Faltava
Um conto sobre vizinhos, temores e ansiedade
- PLAM!
Fechou os olhos e respirou fundo, como se pudesse despertar daquela realidade que queria tomar como sonho. Mas a verdade é que a porta do seu apartamento batera. De verdade.
Pronto, agora se encontrava do lado de fora, no meio da madrugada e com um saco de lixo na mão. Fosse alguém normal, já estaria deitado, dormindo e sem se preocupar com o que deveria fazer naquele momento para seguir com a sua vida.
O passo inicial, claro, era jogar aquele saco de lixo fora. Enquanto caminhava para a lixeira do 7º andar do seu prédio, observava os seus próprios pés alternando-se no chão do corredor. Ainda se recusava a acreditar no que estava acontecendo.
Voltou para a sua porta e a observava, incrédulo. Aquele pedaço de madeira perfeitamente alinhado em 90º em relação ao chão o irritava, ainda mais que o passar do tempo não trazia nenhuma resposta à sua agonia.
Sentou-se no chão e recostou a cabeça na porta, ainda sem saber o que fazer. Refletiu sobre as horas e chegou à conclusão que deveria ser por volta das 2h da manhã. Não tinha um relógio para confirmar, muito menos um celular para fazer qualquer contato com o mundo — ou mesmo pesquisar um chaveiro.
Quando os seus pensamentos silenciaram, pode reparar que havia algo além do silêncio. Frases em inglês, seguidas de risadas artificiais, teimavam a ganhar o corredor. Vinha da porta ao lado, do seu vizinho que certamente estava a maratonar alguma série e deixava o volume em índices que prejudicavam o bom relacionamento com os demais condôminos.
Por essas e por outras, a convivência entre eles não era nada civilizada. Recados eram trocados constantemente no caderno de recados da portaria e a síndica fazia o possível para fugir dos dois. O que não adiantava muito em um mundo de telefones celulares.
Suspirou fundo ao perceber qual era a sua saída. Recusava-se a aceitar a hipótese de pedir ajuda logo àquele vizinho. “Deve ter mais alguém acordado”, pensou.
Ir para a portaria, não adiantava. Por economia, uma assembleia decidiu por não ter porteiro na madrugada, ainda mais que eles sempre aproveitavam o turno para dormir. Neste momento, arrependeu-se de ter votado a favor da medida.
Levantou-se e, cuidadosamente, pôs-se a circular pelos corredores na esperança de ouvir alguma TV ligada ou algum sonâmbulo em busca de água na cozinha. Acreditava que poderia ouvi-los e, assim, bater à porta em busca de ajuda.
Quer dizer, essa 2ª parte não havia passado ainda pela sua cabeça. Naquele momento, o desespero, a vergonha e a raiva ainda dominavam as ações e não podíamos cobrar planejamento algum. Mas a situação não era fácil.
Há um ingrediente adicional aí e que ainda não havia sido revelado. Pela manhã, precisava acordar cedo para trabalhar, como todos os dias, mas a sua incapacidade de dormir indicava que estava na véspera de um dia especial.
- TREC, TREC, TREC…
Enquanto caminhava, ouviu o girar de uma chave na fechadura e paralisou. Pensava, neste momento, na sensação de um náufrago ao avistar um barco salva-vidas e sorriu aliviado. Ao virar e perceber de onde vinham os passos, deu-se conta que só poderia ser uma pessoa: o vizinho. Seus ombros encolheram, o rosto perdeu um pouco de cor e continuou a andar em direção ao encontro que o destino lhe proporcionara.
Não tinha o que fazer. Os dois teriam que se cruzar no caminho. Não havia tempo para fugir sem fazer barulho e chamar a atenção, o melhor era continuar a caminhar em direção à própria casa e não estabelecer contato visual.
Perto da curva para o corredor do seu apartamento, deu-se o encontro*. Ninguém aparentou surpresa, embora o vizinho claramente estivesse em desvantagem aqui, já que ele não poderia saber quem encontraria na sua caminhada. Com sua fleuma em dia, continuou a sua jornada. Enquanto isso, o nosso amigo diminuiu bastante o passo, parou em frente à própria porta e pôs-se a refletir sobre a situação.
Ora, agora há um momento ridículo aí. Ele irá voltar e vê-lo aqui, acontecendo mais um encontro. Com a chave em mãos, seria possível evitar tudo isso e, claro, não ter que confrontar o vizinho mais uma vez. E há um diferencial: ele não vai entender nada quando voltar e montará uma versão da história na cabeça.
Era o pesadelo. Preso fora de casa, cansado e com o risco de passar vergonha para a pior pessoa na face da Terra.
Após ouvir o barulho da lixeira fechando, seguido do som dos passos na sua direção, colocou a mão no bolso como se estivesse procurando algo e continuou assim até que ele passasse e adentrasse o covil, como chamava o lar do seu vizinho.
“Era óbvio que ele entendeu o que aconteceu”, pensou enquanto deslizava as costas pela parede até atingir o chão, que servia, também, de repouso. O seu azar arruinou até os planos de caçar ajuda pelos andares. Nem pensava mais nisso. Considerava-se um condenado a esperar pelo sol que anunciaria a chegada do porteiro das 6 da manhã. Deviam faltar ainda algumas belas horas até lá.
Sem a companhia, o silêncio voltara, mas não a tranquilidade. Não conseguia deixar de refletir sobre o que o vizinho estaria pensando. Imaginar que “aquele degenerado” pudesse estar rindo da desgraça que o abatera, era uma agonia que o paralisava. O orgulho lutava e se impunha, não era uma preciso uma base sólida para que ele se erguesse e hasteasse a sua bandeira — manchada, claro.
Quando se recobrou, pensou no olho mágico. Fitava-o incessantemente, tinha certeza de que o vizinho estava ali a espreitá-lo. Pensou em se levantar e conferir; mas, se estivesse certo, poderia ser descoberto e passaria por ridículo. Afinal, necessitaria chegar perto da porta para comprovar a sua suspeita.
E se tocasse a campainha? Imagine, ir até lá e expor toda a situação?
“Caro vizinho, sei que nos odiamos; porém, venho aqui em situação de total vulnerabilidade e imploro-me para que me ajude. Claro que somente recorro a você por não ter mais nenhuma possibilidade de socorro, mas isso não quer dizer que ainda te considero um ser humano decente e com a mínima possibilidade de viver em socie…”
Era melhor esquecer. Não haveria a menor possibilidade de interpretar um personagem e se rebaixar àquele ponto. E entendia que, ao pensar no verbo “rebaixar” para se referir a falar com o vizinho, que a situação era séria demais. Ou, ao menos, ele pensava que fosse.
O que tinha, afinal, a perder? O que o impedia era cristalino: o orgulho. Esse maldito freio que achamos que está fora do nosso controle e que, convenientemente, deixamos incólumes em uma redoma.
A sua mente ia além. Pensava que, a partir da ajuda, seria obrigado a conviver com o vizinho. Teria que dividir o elevador, conversar sobre o clima e receber correntes no whatsapp.
Soava como pesadelo. Refletindo melhor, era o pesadelo que vinha antes de dormir, como se isso fosse possível. Teimava em pensar todo o futuro, como se fosse capaz de prevê-lo. Não percebia que isso era apenas uma tentativa que o nosso consciente faz para nos impedir de entrar em situações desconfortáveis. É a nossa mente pensando em desculpas para nos confortar.
Mas tudo isso era, claro, estúpido. Em geral, só agimos (ou deixamos de agir) para buscarmos uma situação mais confortável. Então, aí, o problema passa a ser da mente querendo contradizer a realidade. Nada pode ser pior do que repousar no chão frio do corredor e se apoiar naquelas paredes levemente chapiscadas.
Pôs-se, então, a pensar em quantas vezes na sua vida deixou de agir. Fez uma longa lista das situações nas quais ele poderia ter feito diferente. Chegou até a traçar uma rota dos caminhos que sua vida tomaria caso não fosse ele.
Até esse momento, estava murcho e infeliz, sentindo-se um miserável sem controle nenhum da vida, alguém cujo trajetória foi completamente decidida por eventos externos.
Subitamente, teve um estalo. Ora, se somos o que somos hoje, é graças a todas as escolhas feitas, incluindo aquelas ignoradas. Como lamentar um destino se ainda pode-se refletir sobre ele? O lamurio deveria existir apenas quando não há mais controle ou qualquer possibilidade de decidir o próprio rumo, passou a acreditar.
Bem, era isso, pelo menos, que o confortava. Decidiu que o “dia do corredor” seria um marco na sua vida, aquele momento que, daqui a algum tempo, lembraria com algum orgulho e saberia que foi ali que tudo mudou. Pensou, inicialmente, em pintar a cozinha. Era um começo.
Toda essa atividade cerebral havia aguçado a sua fome. Acreditava que estava ali há algumas horas, portanto, talvez o porteiro já estivesse próximo de chegar. A esperança o animou ainda mais que o redescobrimento interior de alguns minutos e o levou até ao elevador, de onde partiu rumo ao térreo.
Obviamente, ainda estava escuro lá fora, o que o obrigou a, mais uma vez, aguardar. Devia morar no único prédio do mundo sem um mísero sofá, embora nunca tivesse pensado nisso antes. “Talvez o chão da portaria seja mais confortável”, se enganou enquanto, já abaixando, dobrava as pernas junto ao peito para repousar a cabeça.
Acordou, enfim, com a mão do porteiro o cutucando levemente. Dado o inusitado da situação, os dois entreolharam-se sem entender o que acontecia, mas isso rapidamente mudou com o apresentar da história. Feliz em ajudar, o porteiro imediatamente ligou para um chaveiro e pediu urgência no atendimento.
Enquanto detalhava a sua aventura no corredor e divertia o porteiro com a sua rivalidade com o vizinho, o chaveiro chegou. Com os sonolentos olhos semiabertos, cumprimentou a todos e já foi logo chamando o elevador.
Subiram sem trocar palavras e assim foi durante todo o corredor até se aproximarem da porta. O morador, apressadamente, tomou a frente para mostrar qual dos apartamentos habitava. Só que antes de poder falar qualquer coisa, deparou-se com uma chave presa com fita adesiva e um enorme recado, em letras maiúsculas:
“UMA VEZ, NO PASSADO, QUANDO VOCÊ ERA UM SER HUMANO, VOCÊ DEIXOU A SUA CHAVE COMIGO PARA EMERGÊNCIAS
ACHO QUE AGORA É UMA”
Enquanto tentava entender o que estava acontecendo, ouviu uma voz:
- Senhor, se não quiser o serviço, são 70 reais da visita.
FIM
Crédito da Foto: A.solano