“Dias Malditos”, o diário de Búnin sobre a violência da revolução russa
Deparei-me com este livro há alguns meses, na Livraria da Travessa. Enquanto passeava com os olhos e dedos pelas pilhas, ouvi o seguinte diálogo entre dois vendedores:
- Já leu este “Dias Malditos”?
- Não, nem conheço.
- É muito bom, mas o Búnin é muito reacionário.
Não nutro qualquer simpatia por reacionários, mas sei que a categoria pode ser bem ampla, considerando o extremismo do locutor. Assim, a minha curiosidade foi despertada e estava com o livro nas mãos. A descrição — que relatava que o livro era, na verdade, um diário que o autor manteve entre 1918 e 1919 no início da guerra civil russa.
Eu adorei, mas julguei o preço de 100 reais excessivo e deixei-o de lado por meses até semana passada, quando uma promoção facilitou a compra: 70 reais, na Amazon. Caro, mas a vontade prevaleceu.
A edição da Editora Carambaia é linda, de capa dura e em uma bela tradução da Márcia Vinha. Aliás, a versão em português é parte da sua pesquisa de doutorado sobre a literatura russa do exílio e a representação do trauma coletivo em obras literárias do período. A minha única crítica à Márcia é que o posfácio deveria ser, na verdade, uma introdução, tamanha a ajuda que ele dá para entender melhor o autor e a sua obra.
Mas, chegando, enfim, ao Búnin. O autor — Nobel de Literatura em 1933 — consegue com a sua técnica, mesclar as suas ideias, recortes de jornais e diálogos presenciados por ele em um diário que expõe e denuncia a violência imposta pelos bolcheviques no processo de tomada do poder.
E, enquanto faz a exposições desses dias caóticos, Búnin reflete sobre as revoluções:
“como são iguais todas essas revoluções! (…) Tudo isso se repete, antes de mais nada, porque um dos traços característicos da revolução é a sede alucinada de jogo, de histrionice, de pose e de teatro de feira. É o primata despertando no homem.” (p.55)
e, também:
“será que tantas pessoas não sabiam que a revolução é só um jogo de sangue pela troca de lugares, que sempre termina somente com o povo — mesmo depois de conseguir se sentar por algum tempo no lugar senhorial, nele banquetear-se e enfurecer-se — no final das contas, sempre acaba com o povo levando a pior?”
A revolta do autor é cômica em vários momentos. Enquanto reclama da violência, sobra espaço para críticas aos caminhos tomados pela literatura russa e, também, à falta de modos das pessoas na rua.
Só que o principal ponto do livro é entender, além do terror provocado pelos bolcheviques, o quanto a vida na Rússia estava mudando, com o novo governo começando a gerenciar cada aspecto da vida dos habitantes. Desde a mudança na ortografia até quando ele relata a visita do “”comissário” de nosso prédio”. As aspas em comissário, com o humor de Búnin, parecem indicar menosprezo. A visita do burocrata foi para:
“medir o comprimento, a largura e a altura de nossos cômodos “com o propósito de coletivização com o proletariado”.
Não é um livro fácil para quem vê aqueles anos sangrentos com lentes rosadas — o que me parece ser o caso dos amigos livreiros do início do texto. E será um livro enfadonho para quem apenas deseja ver um relato do terror do período. Para estes, o chatíssimo “Lênin, Stálin e Hitler” (Robert Gellately) pode ser melhor.
Mas para quem quer ver um diário brilhantemente escrito sobre uma época caótica, com um texto leve e que te envolve, “Dias Malditos” é uma escolha certeira.
Para complementar o tema, vale ver “Em Meio à Revolução — as testemunhas da queda da Rússia Imperial”, de Helen Rappaport. Ele cobre o período pré e pós golpe.