O Quebra-Cabeças Particular
Um pequeno conto sobre relacionamentos e expectativas. Escrevi-o há quase 10 anos e o editei agora.
O som que o molho de chaves produzia ao ser largado sobre a mesa do corredor lembrava o sinal da saída do colégio. Parecia que, a partir daquele momento, o seu corpo recebia a ordem de relaxar. Com a diferença é que agora se encontrava em casa após mais um exaustivo dia de trabalho e não mais apenas entediado com uma aula sem sentido de Química.
Ele morava sozinho. Aquele apartamento de sala e quarto era suficiente apenas para ele e o seu desleixo que se manifestava em qualquer superfície plana da casa — todas elas recebiam objetos estranhos à sua função como meias e copos sob cadeiras. De vez em quando, um impulso dava-lhe força e os objetos voltavam aos seus respectivos lugares.
A motivação dos rompantes vinha com o pensamento de que, para arrumar a vida, era necessário arrumar a casa. O problema era que, invariavelmente, sob o pretexto da fome ou de uma chamada no celular, a “virada na vida” era interrompida e deixada de lado. Quando isso acontecia, esparramava-se no sofá e iniciava a observação da casa, como se a contemplar a sua obra. Um suspiro seria solto em seguida, simbolizando o lamento por mais uma derrota e o aborto temporário na renovação da sua rotina.
A partir dali, restava apenas a válvula de escape: o computador. O levantar da tela e o pressionar na tecla de “liga” eram a senha para o primeiro bocejo. Enquanto o sistema operacional não o permitia iniciar a sua exploração, checava o horário e concedia-se quarenta minutos antes de tomar o rumo da cama, chegando à conclusão de que este era o horário apropriado para ter uma noite razoável de sono e parecer mais disposto no dia seguinte.
De fato, impor-se limites nunca havia sido o seu forte. O normal era desligar o computador já bem arrependido da sua prolongada permanência no aparelho. Não raro, ia escovar os dentes pensando se havia feito algo de útil enquanto estava com as pupilas dilatadas frente à tela. A resposta a esse questionamento interno sempre ajudava a piorar o seu humor antes de finalmente repousar o seu corpo na cama por algumas horas.
Assim, a vida transcorria normalmente, com os arrependimentos e rompantes, até que, em um dia, enquanto buscava saber o que acontecia com a vida dos outros, ele se deparou com um comentário de uma mulher que ele não conhecia. Na verdade, ela era amiga de um conhecido do trabalho, daqueles que você apenas é amigo virtual graças a uma foto tirada em alguma comemoração da empresa. “Ela deve ter me adicionado”, pensou.
Mas ele reparou naquele comentário. Ácido, no limite da grosseria. A foto da dona daquelas palavras, com os óculos escuros a servirem de arco sob a cabeça para os cabelos negros e longos, revelava uma mulher que parecia dona de si, a olhar para o horizonte como se convidando o observador a uma reflexão: “lá longe é o meu lugar, você não concorda?”.
Tudo isso passou na sua cabeça que, por uma foto, tentava extrair o máximo de informações. Foi até o telefone e buscou o caderninho de recados — herança de uma ex-namorada revoltada que sempre tinha que esperá-lo buscar um papel para anotar qualquer coisa quando ligava — e escreveu o nome da mulher e, ao lado, a sua provável idade: 32 anos. Pronto, ele já tinha algo para se preocupar. Era hora de dormir.
O dia seguinte no trabalho passou bem rapidamente, segundo os seus padrões. Entre cada formulário que tinha que preencher como parte das suas tarefas, ele apenas se preocupava em fantasiar uma existência para a mulher. Era como se tivesse apenas uma peça do quebra-cabeça e todo o resto fosse criado a partir da sua imaginação.
Ao chegar em casa, pôs-se imediatamente a ligar o computador. Enquanto a máquina iniciava, trataria de trocar de roupa e ver algo para comer.
Se o quebra-cabeça continha apenas uma peça, à medida que novas eram adicionadas em substituição às imaginárias, um retrato mais real era criado. Só que houve um momento no qual era necessário dar mais um passo, já que a simples observação não o estava fazendo avançar. Foi quando tomou coragem e se pôs a iniciar uma conversa, acreditando que, enfim, era a hora. Calculou os horários dos comentários e enviou: “oi!”.
Ao “oi” somaram-se palavras e frases e cumprimentos e despedidas. Agora, era como se as peças restantes do quebra-cabeça, ao invés de estarem espalhadas ao redor da caixa, fossem separadas por proximidade, facilitando a montagem. Com isso, a velocidade com que as peças iam se encaixando crescia cada vez mais, tanto é que nem se importava que não houvesse relação alguma com aquele quebra-cabeças imaginário.
O prazer de ver as peças fazendo sentido, ganhando forma, suplantava tudo. Ria toda vez que se lembrava de que tudo começou a partir de um comentário. Sentiu um alívio ao contar a saga e perceber que ela, também, achava tudo aquilo uma bela história.
O acúmulo dos dias fez com que o tempo voltasse ao seu ritmo. Os formulários pareciam ter aumentado, mas o som do molho de chaves encontrando-se com a mesa já não mais possuía aquele significado de alívio. Afinal, não era mais o único habitante da casa; muito embora, frequentemente, tinha vontade apenas de levantar a tela do computador e perder-se ali por horas, até se arrepender de ter gastado tanto tempo.
Mas, hoje, talvez não. Apenas pensava na peça inicial do quebra-cabeça e de como ele foi terminado. A sua dificuldade era entender como havia tanta diferença entre o que ele havia imaginado e o que ele foi montando. Ao abaixar a tela do computador e antes de deitar-se ao lado da sua agora esposa, filosofava se, enquanto ia conhecendo-a, prestava atenção no que estava sendo montado. Ou se montar um quebra-cabeças era tudo que importava.