O Vendedor Apegado

Thiago Pinheiro
11 min readDec 12, 2022

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Um conto sobre um homem, seus sacrifícios e o apego aos livros e à sua história.

O surrado pano cumpria a sua missão de sempre: trazer o colorido de volta às capas dos livros enquanto era esmagado pelas mãos ásperas e enrugadas de Rubem. Estávamos no lugar que atendia apenas pelo nome de “livraria”, fato destacado pelo letreiro de fundo branco e letras pretas no lado de fora. Dentro, a primeira coisa que todos notavam era o enorme balcão de madeira, onde Rubem recebia os (poucos) compradores e (muitos) vendedores que, de vez em quando, apareciam por lá.

Dos vendedores, quase sempre ouvia a mesma história. “Meu avô morreu e não posso ficar com todos esses livros, seu Rubem”. Se estivesse longe do balcão — onde quase nunca parava, ele se aproximaria da pessoa e, invariavelmente, replicaria: “nem eu, meu caro, nem eu”.

E adicionaria ao raciocínio:

“Imagine quantas histórias têm cada um desses livros? Como eu poderia me apoderar delas? Aqui eles não terão justiça, certamente ficarão perdidos na estante até o dia que eu me for. É isso que você quer?”.

A história não fazia sentido. Nem a dele, nem a do vendedor; mas a verdade é que Rubem não queria comprar nada. Receber livros daria trabalho, gastaria dinheiro e, no fim, ninguém compraria.

Se notasse que o vendedor estava desesperado por dinheiro, Rubem era bondoso e não seguia em frente com a conversa — muito menos com a compra, é bom frisar. Mas se a sua experiência apontasse que o caso ali era apenas de desdém pelos livros, ele perdia um pouco a compaixão, chegando a dar algo próximo a um sermão. Entendia que todos poderiam ficar sem dinheiro, não havia como julgar ou saber a situação de ninguém; mas nem por isso ele admitiria um desrespeito aos livros.

Assim era a vida de Rubem. Se havia parentes, ele não entrava em contato. Alguns amigos apareciam ocasionalmente em um processo apenas de ida. A livraria era a sua única vida, se considerarmos que cada ambiente no qual vivemos é uma vida independente e nós somos o elo entre todas elas. Mas não havia elo na vida do nosso protagonista. Embora este parágrafo seja pessimista, ao menos havia sonhos — o último refúgio da loucura da normalidade e porteiro da entrada da loucura diagnosticável.

Mas os sonhos de Rubem eram acordados. Enquanto folheava os guias de viagem antigos, por exemplo, imaginava-se naqueles lugares, no que faria e no que sentiria. Gostava também de encontrar anotações nos livros, achava que era um ato de sorte — um sentimento que não é muito compartilhado por aí. Ao ser apresentado a uma pilha de livros e nas raras oportunidades na qual se via compelido a comprá-los, ficava receoso de mostrar empolgação ao ver as notas e rabiscos nas laterais enquanto calculava um preço pela pilha que era empurrada no balcão.

As palavras escritas tortas nos cantos eram a humanização dos livros, eram a prova de que vidas haviam sido afetadas ou transformadas por palavras e dificilmente haveria algo mais emocionante para Rubem. Era o propósito da sua livraria, sonhava em ver crianças e jovens saindo com um livro e retornando décadas mais tarde para agradecer por um livro clássico que mudou a sua vida.

Nunca apareceu ninguém assim, infelizmente. Mas, naquela tarde, outro adulto, engravatado, entrou com uma feição que demonstrava que não estava em um ambiente familiar e perguntou: “o senhor é Rubem Almeida, dono desse estabelecimento?”

Antes de responder o visitante, “estabelecimento” piscou incessantemente no seu cérebro, como se ele tentasse descobrir por que alguém usaria aquela palavra para definir uma livraria. Era como se colocasse no mesmo patamar uma farmácia, um cassino, um prostíbulo e uma escola. Ficou claro, ali, a total falta de intimidade do visitante com aquele tipo de ambiente.

O processo, claro, durou menos de 2 segundos. Embora possa ter parecido uma eternidade, Rubem ainda se lembrou de ter lido em algum livro que ternos marrons não são bonitos, o que diminuiu ainda mais a avaliação ruim que já havia feito. Mas respondeu um lacônico “boa tarde, sou sim. No que posso ajudá-lo?”.

O visitante franziu rapidamente a testa ao perceber a sua falta de educação ao não ter falado “boa tarde” antes de fazer a pergunta. Ao se recompor, aproximou-se do balcão, estendeu a mão e pediu desculpas pela indelicadeza com: “boa tarde, desculpe pela pressa, eu andei bastante. Meu nome é Jesus Santos, sou advogado. Podemos conversar?”

Todos nós podemos concordar que essa frase, ouvida por qualquer um de nós, causaria preocupação. Advogados aleatórios dificilmente trazem boas notícias, por mais que o nome do visitante possa enganar algum desavisado. E Rubem cerraria fileira conosco pois respondeu com um direto: “estou devendo algo?”.

Jesus sorriu. Enquanto ajeitava o maldito terno, respondeu que não havia dívida, mas que trazia uma proposta interessante de seu cliente.

Rubem, claro, não entendeu. “Por que um cliente mandaria um advogado para a sua loja?”, pensou. Mas, mesmo assim, não custava nada ouvi-lo e pediu para Jesus segui-lo, enquanto apontava para uma mesa redonda na lateral da livraria onde os frequentadores costumam sentar para analisar ou ler os livros que pretendiam comprar.

Após se sentarem, Jesus foi direto: “senhor Rubem, já pensou em vender sua livraria?”

Se o advogado falou algo após aquilo, Rubem não ouviu mais nada. Sua vida parou ali. Nunca tinha ouvido aquela frase. Pior: nunca tinha imaginado aquela situação. Como seria uma vida sem a livraria? Sem aquela rotina? Sem os livros? Seria Rubem ainda o Rubem?

Após se recobrar, levantou-se da cadeira sem falar nada. Começou a circular entre as estantes e passear com os dedos nas laterais dos livros, como se procurasse uma resposta para as muitas dúvidas que bombardeavam a sua mente naquele momento.

Quando, enfim, voltou à mesa; foi direto: “por que ele quer comprar a livraria?”

Jesus era um jovem advogado. Pouco mais de 30 anos e com alguns poucos de OAB. Estava visivelmente nervoso, pois negociar uma compra de uma livraria não era algo que havia aprendido na faculdade, nem nas conversas com amigos. E sabia que estava lá porque ninguém queria pegar aquele caso, se é que podemos chamá-lo assim. Mas cá estava ele, sentado em frente ao Rubem e tendo que imaginar uma resposta sem expor o seu cliente.

Pensamos em um café e restaurante”, soltou rapidamente Jesus. Como se falar na 1ª pessoa do plural passasse a ideia de um grupo organizado do qual ele fizesse parte. E continuou, como se quisesse a empatia de Rubem: “poderíamos aproveitar um pouco da decoração existente, seria ótimo para o lugar”.

Jesus não fazia a menor ideia do que seria o lugar. Queria a comissão e percebeu rapidamente o valor sentimental do lugar para o dono. Entretanto, não percebeu que, ao falar “poderíamos aproveitar um pouco da decoração existente”, ativou um gatilho em Rubem que dificilmente poderia ser desfeito.

Neste momento, Rubem não mais prestava atenção à conversa. Apenas regurgitava as palavras no seu cérebro e raciocinava: “se vão aproveitar parte da decoração”, quer dizer que parte não será aproveitada. O que será feita dela?”.

Enquanto Rubem pensava, Jesus tentava entender o que se passava do outro lado da mesa. Repetia mentalmente que seguido o roteiro preparado na noite anterior de forma correta e que tudo daria certo, como se buscasse confiança nas próprias palavras. Rubem, decerto, já imaginava um caminhão despejando um “Por quem os sinos dobram?” em um depósito de lixo.

Jesus tentou, então, apelar ao dinheiro, já que era melhor não dar espaço ao campo emocional. Falou de números, das inúmeras lojas que fechavam na região, citou o modelo de negócio da Amazon, do futuro dos livros, do ebook, da educação, do governo, da eleição, das suas férias escolares, do casamento. Falou de tudo e Rubem ainda continuava com a cabeça no lixão.

Após dar-se conta de que havia ido longe demais e a expressão de Rubem não mudara, parou. Respirou fundo, como se tomasse fôlego e disparou: “seu Rubem, você acha que consegue manter essa loja por mais quantos anos?”.

Rubem acordou. Jesus percebeu a mudança na expressão e repetiu a pergunta, adiantando-se. Rubem sentiu. Pensou nas contas e na preocupação do seu contador, a quem nunca levou à sério e achava totalmente desnecessário.

Lá no fundo, sabia que não tinha tanto tempo assim de vida. Com quase 70, temia ficar doente e ter que fechar a livraria. E quando se fosse, o que seria dos livros? Não haveria ninguém ali para se preocupar com eles.

Mas não é fácil se livrar de uma vida, ainda mais quando ela é a única que temos. Colocar um ponto final e ter o mundo todo à frente é fácil em sonhos e devaneios, mas coragem costuma ser mais abundante em telas e mentes.

O dinheiro era bom, sabia disso. Permitiria visitar alguns dos destinos que conhecera nas páginas e não mais esperar as promoções de vinho no mercado perto da sua casa para poder compra-los. Mas e depois? A rotina o preocupava tanto quanto o destino dos seus livros.

Pediu um tempo ao jovem do terno marrom e teve como resposta uma semana, não mais que isso. Ao ouvir a resposta, não pode deixar de pensar que era estranho ter um prazo para decidir o seu futuro. Não havia prazos na sua vida, era algo completamente estranho a ele.

O advogado foi até o balcão, deixou o seu cartão e se despediu, tendo como resposta um aceno de uma das mãos de Rubem enquanto ele continuava a fitar a porta, como se esperasse que a resposta para os seus problemas pudesse aparecer como uma visita.

Desnecessário dizer que o restante daquela tarde foi apenas de reflexão para Rubem. Do seu balcão, fingia inventar tarefas e bolar novas arrumações como se fosse iniciar alguma delas. Por fim, quando ainda havia um pouco do sol lá fora, deu-se o benefício da folga e tratou de fechar a livraria.

Não preciso, aqui, enrolá-los com a noite de Rubem. Foi monótona e inquieta, como seria natural. Mas, ao menos, entre idas e vindas da cozinha, houve uma ideia. O questionamento — “você acha que consegue manter essa loja por mais quantos anos?” — não saía da sua cabeça e o levou a agir.

Acordou mais cedo que o habitual, tomou o seu café, buscou uma folha em branco e rabiscou algumas palavras. Antes de sair, colocou o papel e a fita adesiva no bolso e partiu em direção à livraria. Ao chegar, não buscou a chave; mas, sim, o papel e a fita adesiva, colando na porta o que poderíamos chamar de cartaz e saiu.

O coração de Rubem acelerara. Algumas gotas de suor pareciam surgir abaixo da camisa, mas uma respiração mais funda pareceu deixar tudo normal. Era a 1ª vez, em décadas, que a livraria não iria abrir. Era uma quebra da rotina. Rubem deixara de ser Rubem.

Foi, então, em direção a um café conhecido um pouco mais abaixo na rua. Era um lugar bonito, com paredes de tijolos com quadros de paisagem de países que começavam com a letra “D”. Foi a inusitada forma do dono homenagear a sua esposa, Diane. Ninguém ligava, já que ninguém presta atenção a essas coisas, mas Fágner, o romântico decorador, adorava quando alguém perguntava a lógica. Se estivesse de bom humor, até dava uma cortesia.

O café era perfeito para Rubem, pois teria uma boa vista da livraria no 2º andar. O problema era que ele costumava estar fechado, abrindo apenas para reservas e ocasiões especiais. No caixa, pediu um expresso e um croissant de peito de peru e, enquanto aguardava o troco, sorriu e falou para Gabrielle, a atendente: “eu posso usar o 2º andar?”. Ela, claro, ficou sem entender. No que prontamente Rubem completou com “eu precisava ficar sozinho, longe da livraria”.

Era difícil recusar um pedido daquele. Gabrielle, claro, o conhecia. Rubem era cliente habitual, deixava sempre a caixinha de final de ano e ainda costumava ajudar os filhos dos funcionários da região com alguns dos livros que as escolas pediam. A sua única exigência era que as crianças dissessem o que achou. Podia ser até um vídeo no celular da mãe, o importante era contar.

Assim, Gabrielle, concordou. Como não havia outro cliente, pediu a Rubem que fosse logo na frente para ninguém vê-lo subindo e que ela logo iria atrás com as chaves. Enquanto ele fazia a curva para o segundo lance de escadas, pode ver um jovem casal chegando até o balcão, no que ouviu a voz da sua salvadora: “só 1 minuto!”.

O “1 minuto” era o tempo para o casal ser atendido. Rubem, por outro lado, aguardou outros 10, mas nada havia a fazer. O seu café já havia acabado e o croissant estava quase tendo o mesmo destino quando ouviu o som de borracha esfregando na madeira da escada. Gabrielle estava chegando.

Com um expresso na mão, a atendente sorriu e o entregou: “achei que você gostaria de outro”. Incrédulo, Rubem ainda estava no início dos agradecimentos quando foi interrompido pela funcionária: “sei que você tem as suas razões para querer ficar sozinho aqui, mas não me meta em confusão, por favor”. Sem saber direito por onde começar a agradecer, Rubem só soltou um “pode deixar, minha filha”, seguido de um “agradeço de coração” e entrou no salão recém-aberto. Gabrielle o chamou, entregou as chaves e disse: “feche por dentro e não faça barulho”.

Assim que agradeceu novamente, Rubem procurou uma das varandas de onde pudesse ver a livraria e que não chamasse a atenção da rua. Puxou 2 cadeiras — uma para ele e outra para o café — e sentou-se disposto a observar a porta do lugar onde deveria estar.

Era inegável que Rubem estava ansioso pelo que estava por vir. Retirou o bloquinho de papel e a caneta que estavam no bolso dianteiro da camisa social que vestia e os colocou na cadeira ao lado.

Com o tempo, a ansiedade foi dando lugar à tristeza e, esta, à perplexidade. Achava que a sua livraria era um tesouro para a região. Um lugar de onde emanava cultura e que poderia ser o catalisador de mudanças, seja nas vidas daqueles que saíam com os livros, seja com os exemplos dados por ele mesmo.

Mas, pelo visto, estava sozinho nessa. Tentava conter as lágrimas enquanto ainda continuava a mirar a porta da livraria, já questionando se havia sentido continuar ali.

Pela 1 vez, retirou o cartão do advogado e o contemplou. Parecia, finalmente, pensar na proposta. Após um suspiro, guardou o cartão e renovou a sua esperança, voltando para a sua missão.

O movimento no café parecia ter aumentado, então concluiu que era hora do almoço. Pensou ser o momento perfeito para sair e se levantou. Abriu o salão, mas deixou a chave pendurada na porta. “Gabrielle vai entender”, pensou. Desceu as escadas, tomou o cuidado de ver se alguém notava a sua presença e saiu.

Andou alguns quarteirões, fez um sinal para um táxi, pedindo para ser levado ao centro da cidade. Quando desembarcou, foi até um hotel próximo e pediu 1 quarto para 1 noite. Fez o check-in, assinou o que tinha que assinar e pegou o elevador até o 4º andar.

Rubem abriu a porta, enxugou novamente as lágrimas que segurou por todo o caminho e sentou-se na cama. Pegou o telefone e digitou o número do advogado: “Jesus, é o Rubem. Eu aceito.”

Rubem nunca vai saber disso. Mas, enquanto estava na livraria, 2 jovens passavam em frente à livraria e viram o cartaz pendurado. Prontamente, um falou para o outro:

“Ih, vai fechar a livraria. O que será que vai abrir no lugar?”

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Thiago Pinheiro

Jornalista e fugitivo arrependido do curso de Literatura